Brasília- 1ª Conferência Nacional da Pesca Artesanal
O MANIFESTO DOS SEM MAR
Assim como os monocultivos (soja, eucaliptos, cana de açúcar)
estão ameaçando acabar com a agricultura familiar, que é a que
bota comida na nossa mesa, a aqüicultura em grande escala e
cessão de águas publicas seriam o golpe que faltava para os
pescadores e pescadoras artesanais do Brasil, responsáveis pelo
60 por cento da produção pesqueira nacional e já transformados
em uma raça em extinção pela fome sem limites do capital, que
devora os seus territórios tradicionais e destrói os ecossistemas
onde vive e trabalha. Eles não querem converter-se nos SEM
MAR, SEM BEIRA DE RIO, SEM MANGUE e durante três dias
(28 a 30 de setembro) acamparam, deliberaram e manifestaram
em Brasília, a cidade sem águas.
ACAMPAMENTO NO SECO
A temperatura media no estacionamento do Estádio Manuel Garrincha,
em pleno Distrito Federal, era de 38 graus a sombra. O ar seco da capital
foi as boas vindas para quase um milhar de homens e mulheres
acostumados a brisa úmida da maresia, lama de mangue, banhados,
lagoas açudes e rios. Com certeza o mestre Garrincha os houvesse
acolhido no estádio, mas para esta Conferencia- que veio se contrapor à
simultânea 3ª Conferencia da Aqüicultura e Pesca organizada pelo
governo federal- sobrou o estacionamento.
Por ironia do destino, a CNPA estava localizada nos fundos da
“conferencia oficial”, realizada no Centro de Convenções Ulysses
Guimarães e com os delegados de todo o país hospedados em hotéis
varias estrelas. O acampamento organizado pelo Conselho Pastoral dos
Pescadores (CPP) e parceiros estava baixo um céu estrelado, mas não
deixou nada a desejar: imensas barracas para Sala de Plenárias, Secretaria,
Segurança Comunitária, Imprensa, Saúde (com profissionais,
medicamentos, um paché e chás de ervas medicinais trazidas pelas
comunidades), dormitórios, cozinhas, pias coletivas e destinação dos
resíduos, pias especiais para escova dentes e para lava pratos (cada um
lavava o seu), bebedouros de água potável, banheiros químicos e de
banho com espaços para homens e mulheres. Isso tudo, sem nenhum
apoio oficial, mas não faltou comida: as comunidades aportaram
temperos, frutas, legumes e claro, mariscos e peixes congelados e secos
levados em isopor.
“A Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP), hoje transformada
em Ministério da Aqüicultura e Pesca (MAP), é resultado da nossa luta
também, mas o órgão publico parece ter sido transformado em instancia
de definição de investimentos para a aqüicultura e a pesca industrial,
independente dos graves problemas ambientais que precisam ser
enfrentados e da necessidade real das populações tradicionais”, diz o
documento da I Conferencia Nacional da Pesca Artesanal (CNPA),
organizada por associações, colônias, sindicatos e federações de
pescadores, Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais,
Articulação Nacional dos Pescadores (ANP), Associação do Movimento
Nacional dos Pescadores (AMONAPE), Confederação dos Sindicatos de
Pescadores Artesanais, Movimentos de pescadores no Baixo Amazonas,
Ceará, Bahia e Maranhão.
O encontro teve como parceiros movimentos que compõem a Via
Campesina (MST, MAB, MPA), Caritas Brasileira, CNBB/Setor da Pastoral
Social, Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Comissão Pastoral da
Terra (CPT), Coordenação Ecumênica de Serviços (CESI), Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), CAIS, Articulação Popular de Bacia do Rio
São Francisco, Núcleo de Estudos de Comunidades Tradicionais (NECTAS),
Rede Mangue Mar, Instituto Recife, Nega, Costeiros, Misereor, DKA,
Campos Limpos e MZF.
Direitos sociais, identidade e território, direitos específicos das
pescadoras, equilíbrio ambiental, desenvolvimento do setor pesqueiro
artesanal e legislação foram assuntos clave deste encontro, resumidos na
declaração: “Nós estamos unidos e não aceitamos ser manipulados e
tratados como se não entendêssemos que estão querendo se apropriar
dos nossos territórios tradicionais e inviabilizar a sobrevivência dos
nossos filhos e netos”.
Lá, no Centro de Convenções, o ministro da Pesca e Aqüicultura, Altemir
Gregolin, deu as boas vindas os delegados pescadores, armadores e
empresários da aqüicultura, junto com a ministra da Casa Civil, Dilma
Roussef, quem comparou o Pre-Sal com o objetivo do governo de se
transformar em um dos maiores produtores mundiais no campo da pesca
e avisou: “Vamos precisar dos senhores diante das perspectivas que
temos para nossa economia”. Brasil potencia exportadora, de petróleo e
produtos da pesca, mas a que custo social e ambiental e de perca
irreversível dos saberes e fazeres das comunidades tradicionais e da
soberania alimentar?
PRIMEIRA ESCALA: BOM JESUS DA LAPA
A Bahia foi um dos estados melhor representados e organizados na
CNPA. As comunidades do velho Chico, litoral sul, baixo sul, extremo sul,
Recôncavo marcaram um encontro prévio na Associação de Moradores e
Pescadores Ribeirinhos do Rio São Francisco em Bom Jesus da Lapa.
Ali se afinaram as problemáticas dos pescadores de mar, rio, lagoas,
mangue, um primeiro contato com um universo pleno de diversidade,
junto com os agricultores familiares, de margens de rios e açudes, ouvindo
testemunhas sobre expulsão forçosa dessas comunidades por grandes
projetos de hidroelétricas, transposição, petróleo, monocultura de
eucaliptos, pesca predatória para exportação.
“Percebemos que não estamos sós, que temos muitas coisas em comum
com os campesinos e que marisqueiras e pescadores temos muita
capacidade de nos organizar e sair do lamento para ação”, disse um
pescador. O povo do Rio São Francisco deu testemunhas de como é dura a
realidade da Caatinga, um ecossistema tão ou mais ameaçado que a Mata
Atlântica e a Amazônia, amostrando porem otimismo e força de vontade.
“Ficamos admirados com a fibra e a coragem dos pescadores e pescadoras
do Velho Chico, que lutam em condições bem mais adversas que as
nossas, do litoral, mesmo quando o agressor é o próprio governo”.
Todos visitaram a Igreja de Bom Jesus da Lapa, uma verdadeira catedral
formada por dois grandes salões de cavernas naturais, que nenhum
arquiteto gótico poderia ter desenhado. Pescadoras e pescadores
contemplaram às estatuas de bronze de São Francisco de Assis, o santo
da natureza, e de um pescador, Santo André, com uma feira de peixes na
mao.
LULA: DE QUE LADO VOCE ESTA?
Logo no começo da CNPA foi feito um minuto de silencio para “todas as
companheiras e companheiras que não puderam estar neste evento
histórico, vitimas da injustiça e o racismo ambiental que se perpetra
contra essas comunidades que estão sendo expulsas do seu território
como Dona Maria do Paraguaçu e outros da Resex Bacia do Iguape”, no
Recôncavo da Bahia. As comunidades quilombolas entoaram um toque de
birimbao, toque este na capoeira dedicado aos caídos na luta.
Sob o lema “Pescadores e Pescadoras na luta por território, afirmando
políticas de direitos para a pesca artesanal”, o documento da CNPA se
autodefine como “O marco político e organizativo que, oportunamente,
nega um modelo de crescimento perverso que coloca em risco a
existência das famílias do mundo da pesca artesanal no Brasil”.
“Além disso, torna publica a constatação de que o Projeto de Aceleração
do Crescimento (PAC) do governo federal não considera as diversas
necessidades da pesca artesanal e privilegia políticas voltadas para o
economicismo e o negocio agroexportador. a política da Secretaria
Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP) desconsidera culturas,
identidades e intensifica praticas de controle sobre as organizações
sociais pesqueiras”.
Com faixas com frases como “Lula, você de que lado esta?”, os
pescadores e pescadoras artesanais percorreram as estéreis e secas
avenidas do Distrito Federal, provocando histeria nos seguranças dos
prédios oficiais e vigiados por dos helicópteros e vários motos da Policia
Federal, que em nenhum momento deveram intervir dado o nível de
organização, paz e ordem da manifestação. Porem, por quebrar as regras
e a monotonia da segurança de Brasília, alguns policiais hostigaram aos
pescadores com insistentes perguntas sobre os nomes das lideranças. A
resposta era sempre “todos”. Alguns policiais tentaram intimidar ao
fotografo da marcha com frases como “seu filho da p..., você aqui esta no
Distrito Federal, vocês estão furando os perímetros de segurança
institucional dos ministérios e Presidência”. Quando se viu cercado, o
fotografo levantou os braços chamando a atenção do publico e
desconcertando aos policiais.
A marcha percorreu 5 km, passando pelo Palácio do Planalto (o
presidente Lula estava no Rio de Janeiro celebrando a eleição dessa cidade
como sede dos Jogos Olímpicos), o Palácio da Alvorada (novamente em
reformas) e claro, o Ministério da Pesca e Aqüicultura, no prédio do
Ministério da Agricultura, onde uma delegação foi recebida pelo ministro
Gregolin, quem se comprometeu a marcar uma audiência com o
Presidente em 15 dias.
PRIVATIZAÇAO DAS AGUAS
O documento central da CNPA é essencialmente sócio-ambiental e
aponta constantemente ao direito ao território, cada dia mais
obstaculizado por hidroelétricas, barragens, indústrias, monocultivos e
fechamento de acessos as praias, mangues e beiras de rios pela
especulação imobiliária e estrangerizaçao crescente do litoral.
“Os grandes projetos de monocultivos para agrocumbustiveis como a
cana, eucalipto, pinus, soja, envenenam a terra e a água através dos
resíduos químicos como vinhoto, agrotóxicos, aumenta a acidez do solo e
atinge diretamente as bacias hidrográficas e os lenços freáticos, alem de
concentrar e privatizar grandes extensões de terra e água”, sinaliza.
Segundo esse texto, no ano 2008 a primeira faixa de mar, com 160
hectares, foi privatizada para possibilitar a instalação da fazenda marinha
da empresa Aqualider “suprimindo território da pesca artesanal” em um
processo “realizado pelo governo brasileiro em forma não explicita, sendo
usado como discurso a inclusão dos pescadores como pequenos
aqüicultores para camuflar a privatização em curso”.
Após denunciar as “investidas da então SEAP para desregulamentar leis
ambientais que protegiam os ecossistemas” o documento da CNPA diz
que se projeta, para as águas brasileiras uma reedição da produção de
salmão desenvolvida no litoral de Chile, atraindo capital internacional e
“desconsiderando os impactos ambientais e sociais denunciados pelos
trabalhadores daquele país”.
A tentativa do MAP de implantar grandes fazendas de bijupirá
(conhecido como cóbio no mercado internacional) é apontada como a
“repetição do desastre que foi a indústria da carcinicultura implantada
maciçamente no litoral brasileiro na década de 80”. A carcinicultura
(criação de camarão com uso e abuso de antibióticos e hormônios)
representa uma das atividades do mundo que mais degrada áreas de
manguezais e reduz o habitat de numerosas espécies.
Enquanto ao Pre-sal, novo ícone do Brasil Potencia, os pescadores-as
artesanais advertem que “aumento exponencial da exploração de
petróleo e gás significa para os povos do mar e da floresta potencializar os
impactos habitualmente causados por este sector: mais plataformas,
suprimindo ainda mais áreas de pesca, mais impactos ambientais
relacionados com a prospecção, transporte, refino, significativo aumento
da poluição devido à alavancada da indústria petroquímica, aumento de
portos e transito de navios que afetam especialmente os pescadores,
dragagem no mar em áreas já criticas de poluição, que causará a ebulição
da grave poluição em camadas mais profundas como no caso do Porto de
Aratu”.
De fato, os pescadores do Extremo Sul da BA, ademais da prospecção
petrolífera, tiveram que pressionar a multinacional Veracel Celulose para
que afastasse da costa a derroca das barcaças que transportam a celulose
desde o porto particular da corporação (com dragagem as 24 h), no
município de Belmonte (BA) até os portos de exportação em ES, pois
houve reportes de acidentes com pequenas embarcações e destruição de
redes e espinéis. Em audiência publica em Porto Seguro, em maio ultimo,
uma pescadora da Resex Corumbau retrucou a ONG Baleia Jubarte,
contratada pela Veracel para monitorar o transporte da celulose
protegendo os cetáceos, por “estar preocupados com baleias e tartarugas,
mas não com os pescadores, quem vá cuidar da viúva e das crianças se
acontecer um acidente?”.
A Conferencia do MAP foi criticada por colocar no mesmo “barco’
aqüicultura e pesca, numa concepção meramente econômica. O Decreto
4.895/2003 que autoriza o uso de espaço físico de corpos d água de
domínio de união para fins de aqüicultura foi qualificado de “homologação
definitiva do hidronegocio, em desrespeito do Código das Águas- decreto
24.643/1934- aonde trata de águas de usos comum, e da própria
Constituição Federal”.
PROPOSTAS DA PESCA ARTESANAL
Ademais de exigir direitos do território, sociais, trabalhisticos e
previdenciários, de qualificação profissional, infraestrutura,
beneficiamento, produção e comercialização e creditícios para o pescador
artesanal, e específicos para a mulher pescadora, até há pouco tempo
atrás tratada como invisível por no estar embarcada, as propostas da
CNPA apontam aos pontos mais desprotegidos pelos “sucateados” órgãos
ambientais, como fazer valer as áreas da União e de Marinha num litoral
onde as estacas de cimento das grandes propriedades ultrapassam
muitas vezes da preamar, privatizando as praias e impedindo o direito
constitucional de acesso e transito. A seguir, algumas das propostas:
- Reconhecimento, regularização e titulação fundiária do Território
pesqueiro, como o lugar físico da terra e da água no qual a comunidade
tradicional da pesca artesanal constrói sua sobrevivência econômica,
social, ambiental e cultural.
- Rever as concessões e permissões de uso e ocupação das terras da união,
que foram concedidos fora dos critérios da lei.
- Garantir que o SPU defina o limite da linha de preamar, para melhor
definição dos direitos de uso comum das terras da marinha.
- Reestruturar a Delegacia do Patrimônio da União de modo a facilitar a
concessão de uso de terras publica para a população tradicional que
historicamente vive e trabalha no local e que atualmente está dominada
por fazendeiros ou grupos econômicos.
- Destinação prioritária das terras de marinhas para as comunidades
pesqueiras como garantia de permanência e uso por partes dos
pescadores e pescadoras.
- Criação de uma guarda ambiental pesqueira.
- Garantir as áreas de manguezais e salgados (apicuns) como “bem
publico” de livre acesso a comunidade tradicional.
- Aplicar penalidades para desmatamento de nascentes, margens de rios,
lagoas, ilhas, manguezais, como: recuperação da mata nativa,
desapropriação de terras com áreas equivalentes a área desmatada para
uso e manejo da população local.
- Responsabilizar infratores para pagar indenizações pelos danos
ambientais às populações de pescadores artesanais afetados.
- Atuação das corregedorias estaduais e federais numa atuação para evitar
a recorrente ação das policias nos estados (civil e militar) que tem
assumido o papel de segurança privada nas fazendas de camarão,
inclusive usando a estrutura estatal (fardamento, viatura, munição) e que,
sem deixar duvida, vem agindo com violência contra as populações locais.
- Paralisar a expansão da carcinicultura no Brasil, ao mesmo tempo em
que exigimos a não concessão de novas licenças e de financiamento a
atividade de cultivo de camarão, bem como o embargo das fazendas
instaladas e recuperação de áreas degradadas.
- Fomentar sistemas educacionais formais e não formais de valorização e
respeito aos conhecimentos das comunidades pesqueiras artesanais.
- Fomento de política de incentivo do processo produtivo, organizacional e
comercialização do pescado oriundos da pesca artesanal. Possibilitar a
relação dos pescadores artesanais direto com os consumidores.
Reconhecer e valorizar a pesca artesanal como contribuição para o projeto
Fome Zero.
- Separação da pesca artesanal da Aqüicultura na legislação pesqueira, por
se tratar de atividades antagônicas e conflituosas entre si, reconhecendo
a pesca artesanal como atividade tradicional conforme o Plano Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(Decreto 6040/2007).
TECENDO REDES
Por natureza solitário, o pescador artesanal está começando a tecer
redes, com ajuda de organizações como a CPP. O tubarão do capitalismo
globalizado está faminto, trocando diversidade por padronização,
querendo até absorver os conhecimentos empíricos dos profissionais
artesanais para utilizá-los em função das empresas exportadoras, pondo
em risco a soberania alimentar e territorial.
E ameaçando com a extinção desta nobre profissão, uma das mais
antigas da humanidade, e com ela a um patrimônio cultural fabuloso,
povoado de canoas, jangadas e saveiros, siripoias e manzuas, apetrechos
de cipó invejados pelos modernos “designers”, cantigas, lendas e um
oceano de conhecimento adquirido nas universidades das águas.
Sem contar que, segundo o documento da CNPA, um 60 por cento do
consumo interno de pescado no Brasil provêm da pesca artesanal. Como
seria bom que parte dessa produção venha a enriquecer a merenda
escolar! Ou a perspectiva será alimentar aos nossos filhos com soja
transgênica?
Patricia Grinberg- Antonio Ormundo
ecotrilhaba@yahoo.com.br
“Quantos barcos deixados na praia/entre eles o meu deve estar/era u
barco dos sonhos que eu tive/mais eu nunca deixei de sonhar/ quanta vez
enfrentei o perigo/ no meu barco de sonho a singrar/ Jesus Cristo remava
comigo/ Eu no leme, Jesus a remar.
“De repente me envolve uma luz/ E eu entrego meu leme a Jesus/ É preciso
pescar diferente/ que o povo já sente que o tempo chegou/ e partimos pra
onde ele quis/ Tenho cruzes, mas vivo feliz”.
(padre Zezinho- do folheto de cantigas da CNPA)
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